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sábado, 9 de janeiro de 2010

LIMÃO CRAVO, LARANJA AZEDA


LIMÃO CRAVO, LARANJA AZEDA

MAY PARREIRA E FERREIRA
MINAS GERAIS – 1o LUGAR

Carne de Fumeiro
Tome um quilo de coxão mole, lanhe-o um pouco e tempere com sal, caldo de laranja azeda ou limão cravo e uma pequenina quantidade de salitre.
Deixe descansar nesse molho durante 24 horas, escorra e leve ao fumeiro. Passados uns dias, pode prepará-la do seguinte modo: ponha, numa frigideira, gordura, alho em rodelinhas, cebola também em rodelas, uma pitada de gengibre cru ralado e, quando a gordura estiver bem quente, junte a carne; deixe frigir devagar, juntando aos poucos mais gordura. Sirva com caldo de limão e salsa picadinha. Acompanha arroz branco e um excelente vinho da Borgonha.


Sou um espírito escrevinhadeiro, desses que rabiscam muito para contar pouco. Fico assoprando nos ouvidos alheios, histórias que vejo ou que ouço por estas eternidades às quais estou destinado. Já vi de muito e de tudo na minha desvida. E nada melhor para um escritor, mesmo que seja um fantasma, do que falar sobre alguém. Vou falar, aqui, sobre um desencarnado chamado Teotônio. Quem o conheceu no auge do vigor terreno ficou impressionado com as torturas que impingia aos escravos, uns espancados até a morte, uns moqueados, outros emparedados ainda vivos.
Por estas e outras razões vocês podem imaginar o quanto esta alma foi odiada. Sempre que se falou do Coronel Teotônio, se rezou para que ficasse no limbo entre vermes. Mas não foi isto que aconteceu. Na maior parte do tempo ele andou por aí maltratando animais ou fazendo fantasmices solertes. Eu o vi empurrando mendigos nos rios, propagando um incêndio aqui e ali, mas nunca pude intervir, pois somos feitos de matérias diferentes.
Os anos se passaram.
Esta minha história começa com o Coronel morando de favor embaixo da pia da cozinha de uma casa comum de um bairro comum de classe média. Não conheci ninguém que o quisesse por perto. Mofo, umidade e algumas baratas eram suas constantes companhias. Ele se acomodava, não sem reclamar, numa fresta de azulejo debaixo do sifão. E era assim que estava descansando numa manhã quando ouviu vozes na porta dos fundos. Quando alguém vinha visitar a residência que agora considerava sua, ele rodopiava o vento, fazia estalar o piso, e cochichava besteiras nos ouvidos do visitante. Andaram dizendo pelo bairro que a casa era assombrada, e sempre existe quem acredite.
O preço do imóvel está mais que razoável, dizia a corretora para interessados recém-casados. Esse era o vigésimo primeiro cliente em quatro anos.
Semana seguinte o casal voltou verificando detalhe por detalhe da futura moradia, andaram alegres por tudo. A mulher entrando na cozinha, abre e fecha de portas, ficou cara a cara com o abantesma. Ela olhando o aspecto pouco higiênico da pia, ele vendo surgir diante de si a figura de sua finada esposa. Era como se ela o estivesse vendo ali, ridículo, nu, pendurado num sifão sujo, sem nada da arrogância e destemor de outrora. Se sentiu mal o Coronel. Saiu num bafo quente e podre, se enrolou no tronco seco do ipê amarelo e chorou pela primeira vez de todas as suas vidas, chorou de ódio. Lembrou-se da mulher que ele acreditou traí-lo com o negro luzidio, apesar das negativas da acusada. Nem o rabo de tatu, a pimenta nos ferimentos, a morte matada do negro livraram Teotônio do ódio que sentia. Sua ira fez com que o galho fino da árvore se arcasse como ramo de chorão.
Ele tinha certeza de que aquela mulher era a mesma que morreu de apanhar, de tuberculose ou de tristeza e ele nem mandou rezar missa para a desinfeliz. Seu orgulho não permitia humilhação. Ninguém havia rido dele, nem nunca acharam graça de seus esgares embolorados. Tinham, sim, é muito medo de suas malfeitices.
Teve várias mulheres é certo, algumas alvas e silenciosas como a defunta, outras espalhafatosas e negras, em algumas ele batia, de algumas desdenhava, mas filho nenhum. Sempre se lembrava do desprezo que viu nos olhos da esposa moribunda condenando-o a não ver perpetuados em suas sementes, os olhos duros de cobra que ele sempre tivera.
Feito teia de aranha no alto do ipê, o Coronel escutou a voz da mulher vinda do quintal, Quatro meses de reformas e poderemos nos mudar, não é? Não, não seria. Se dependesse dele os dois não se mudariam nunca, e se o fizessem haveriam de sofrer. Se é que a alma fica perambulando para se purificar, a alma em questão desconhecia esta parte.
Os pedreiros entraram na casa na semana seguinte. Enquanto quebraram paredes, e colocaram novo piso, ele atrapalhou o quanto pode. Era um tombo, um corte na mão, uma distensão de braço. Fatos simples mas que serviram para atrasar a obra. Mexeram na cozinha, sua pia malcheirosa transformou-se em coisa linda e moderna. Foi a pior parte. Os canos arrebentaram, o piso descolou, os ladrilhos que não aceitavam rejunte.
Augusto e Nina se desentendiam a cada visita, mas eram jovens, logo estavam aos beijos. E foi neste pedaço da história que apareceu Liduína. Era empregada da mãe de Nina e antiga conhecida minha, uma espécie de diplomata entre dois mundos. E, se havia alguém precisando de ajuda, esse alguém era o Coronel, porque estava na hora de ele ir embora e deixar a vida para Nina e Augusto.
Liduína entrando na cozinha, segurou o queixo com a mão direita, a outra mão apoiada na cintura espremida por grandes e arredondadas ancas mulatas, farejou por todo canto. No quintal, parou embaixo do ipê, virou para um lado, para o outro e fixou os olhos no encima, como os gatos que vêem o nada, Desce daí, velho safado, precisamos de um dedo de prosa. Coronel nem se mexeu, Isso não é da sua conta, nega metida. Começaram uma discussão e por mais que eu espichasse os ouvidos o que consegui entender foi, Êta velho teimoso, vou ter de dar outro jeito.
A noite avançava rapidamente quando Lidú entrou e chamou a menina agora mulher casada e assustada, Eu tive uma idéia minha filha, essa bagunça toda tem de acabar. Enquanto isso vou ensinando você a cozinhar umas coisinhas, eu preciso buscar as receitas e volto amanhã, começamos a lida nos amanheceres
Dia seguinte, Lidú chegou com a carne, limão cravo e algumas traquitanas, começou a falar alto na cozinha, queria atrair a atenção do indisposto fantasma. Nina, ingênua nestes assuntos, entrou animada na cozinha, O que é que teremos de novidades? Coronel se viu seduzido pela bela presença, chegou ligeiro se enganchando na maçaneta do vitrô para ficar mais próximo.
Eu, que assistia a tudo de longe, não via mais em Teotônio os olhos frios e insinceros do passado, e sim, uma curiosidade apaixonada, mas sabem, espíritos também se enganam, então achei melhor não palpitar com Lidú. Ela haveria de dar jeito.
Enquanto mexiam nos temperos a mulata começou a lamentar para a doninha da casa, o destino de um pobre Coronel que viveu num tempo e num lugar onde tudo era muito diferente. Contou a infância do velho com certo ar de tragédia, com certo ar de tristeza. Até eu fiquei penalizado e começava a chorar quando Lidú arrumou as coisas sobre a pia, dizendo que voltaria no dia seguinte para continuar o preparo, Esse prato exige tempo e paciência. O Coronel ficou imóvel, remoendo a expectativa do amanhã.
Liduína veio e enquanto pendurava a carne sobre o fumeiro, ia detalhando para Nina as coisas que fizeram do tal homem, odiado e temido. À medida que os relatos surpreendiam a atenta ouvinte iam domando o inquieto espírito. O cheiro da carne defumando se entranhava no esfumado, fazendo com que ele se lembrasse dos tempos em que uma boa mesa o fazia vibrar. Fazê-lo ter boas lembranças, assim como despertar em Nina o interesse na magia das histórias e da cozinha, fazia parte do plano.
Vez ou outra o Coronel grunhia do alto do ipê, Não, isso não foi bem assim, repetia em tom baixo quase sem graça. Semana se foi, nem o próprio Coronel percebeu que seu espectro se esgarçava nos galhos da árvore. Todo dia, fumaça de menos, mais um pouco de história e ele ia se despedindo deste mundo, se curava através das palavras. Era isto de que ele precisava, saber o que havia feito e arrepender-se. Em outros tempos Liduína andou fazendo feitiçarias, hoje sabia que as coisas podiam e deviam ser diferentes. Sua calma, sua doce voz, suas histórias, puseram fim ao tormento da reforma para o jovem casal, e fim ao descaminho do velho para sossego de todos.
O tempo é mesmo senhor e o Coronel acabou aceitando ir embora. Desapareceu na seiva da árvore levando consigo a visão de Nina arrumando a mesa no terraço, com toalha de linho muito branco, taças de cristal para o vinho, rosas vermelhas. Estava feliz, ansiosa para servir ao marido um quitute tão especial e poder anunciar a primeira gravidez.
Estou achando que não mais sopro histórias como as de outrora, talvez porque esteja ficando velho talvez porque precise de uma prosa com a Liduína. A propósito, saibam que o ipê ficou carregado de flores que mais pareciam pedaços vivos do sol.

(Para maiores esclarecimentos o autor recomenda a leitura de Bugio moqueado, em Negrinha – Monteiro Lobato, Ed. Brasiliense Ltda, 1946).

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